Species Anonymous | Natureza, fantasia e traição

“Motim! Motim!”, gritavam os tripulantes – relatou o capitão Constantino Largos, meses antes do enforcamento do oficial Rocco Xavier Sala. Os documentos de bordo ainda borrados, catados no olho daquela lufada que quase virou a nau em Noronha, estavam assinados pelo carismático comandante. Largos reportava ao conde de Arqueja sua suspeita de que uma facção liderada pelo seu braço direito pretendia tomar a nau “Príncipe de Lucídio”. Mas um relato intrigante de um tenente da marinha britânica descrevia ao seu superior uma outra face da crise: “O oficial Sala discordava do comando letárgico e das escolhas inconscientes do comandante Largos. O atrito se estendeu à autoria dos desenhos produzidos durante a expedição quando o material desapareceu por dias. Quando foram encontrados, na escrivaninha da cabine do comandante, os desenhos estavam assinados com um único nome, o do austríaco Johann Von Gyenge”. O oficial e naturalista Rocco Sala era uma amante da arte e da ciência e um desenhista amador. Ele passou a produzir desenhos e pinturas quando o artista da expedição, Johann V. Gyenge contraiu malária e faleceu três dias depois de chegarem à capitânia do Grão Pará. Sala foi autor de sessenta por cento das aquarelas e desenhos produzidos durante toda a expedição, mas sabia que o comandante Largos estava incomodado com a sua esmerada participação. Para preservar os desenhos originais e asseverar a autoria dos seus desenhos, Sala fez cópias fotogênicas dos seus originais, usando sais de prata e papéis sensíveis à luz. Depois ele os expôs ao sol dos trópicos e os enviou, em segredo, à sua esposa em Coimbra. As cópias foram entregues ao amigo holandês, o comandante Fernand Willekens, que se incumbiu da missão. Os dois encontraram-se quando os navios atracaram em Salvador para reabastecer. Naquele dia Sala dissera ao amigo que temia uma conspiração, mas, paradoxalmente, parecia acreditar na amizade franca que mantinha há anos com o comandante Largos. Um suboficial anônimo, tripulante da esquadra que escoltou a expedição “Teatro das Coisas Naturais e Fantasiosas do Brasil", escreveu em seu diário: “O comandante Largos confiou, sem cerimônias nem trocas, a divisão do comando ao oficial Rocco Sala, mas parece estar mais preocupado em dar seus tragos e planejar o enforcamento do oficial Sala do que em chegar à maldita colônia escaldante e dela tirar algum proveito”. Em carta à esposa, Ana Luiza Amarão, o oficial Sala descreve os embates inúteis que travou com o comandante: “Nossas conversas mais desgastam e incitam a sua teimosia em se abster das responsabilidades no tempo que elas o exigem do que aprimoram nossas ações colaborativas”. O oficial dizia-se contra o método perdulário de documentar as espécies como anônimas e de avaliá-las superficialmente. “Para mim isso é destituir o indivíduo de sua individualidade, é ocultar a essência da criatura e diminuir parvamente as nossas hipóteses de êxito. Sobremaneira, porque desprezamos a sapiência das gentes da terra brasilis”, dissera ele esbravejando, e continuara: “Estamos provocando a ira do nosso Deus, mas esqueceste comandante, de que temos de atravessar o Atlântico pra acalmar em regresso”. O oficial Rocco Xavier Sala foi enforcado num entardecer, um mês depois de deixarem Salvador. Ele foi subjugado, surrado e, depois de os marujos atiçarem os tubarões com o seu sangue misturado aos restos de peixes podres – acumulados para a ocasião –, seu corpo foi jogado ao mar sem a indumentária de oficial. Segundo Sala, o homem do novo século necessitava criar meios de dimensionar suas realidades e aprimorar suas capacidades de estimar os danos à natureza para prevenir a degradação inerente ao processo exploratório. Os desenhos originais foram encontrados na Biblioteca de Warszawa e restaurados quase quatro séculos depois. A autoria dos desenhos só foi reconhecida duas décadas mais tarde, quando os historiadores encontraram as fotocópias de Sala e as cartas enviadas à esposa. O comandante Largos está a boiar em sua fábula, à deriva e sem trucos.

Comentários

  1. Opa. Legal o seu site. Parabéns, Casa.
    A história é real?

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    Respostas
    1. Não, Tábata, é fantasiosa. Mas faz uma alusão a uma história real de um conflito sobre autoria. O texto é fictício e atual, mas foi inspirado em textos e correspondências da época (século XVII). A linguagem foi adaptada para um português mais próximo daquela época.
      Que bom que gostou. Beijo, até!

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